terça-feira, 4 de maio de 2010

Opinião: De Muros e Escudos

Opinião: De Muros e Escudos

Cinda Gonda*

Para Vera Salim

Para que todo este muro?
Por que isolar estas tumbas
do outro ossário mais geral
que é a paisagem defunta?

 
João Cabral de Melo Neto,
Cemitério Pernambucano


Há alguns anos atrás, uma amiga, que residia no exterior, ao contemplar a Rocinha e o Vidigal convivendo “paredes-meias” com um luxuoso shopping exclamou: “como é possível ver e aceitar tamanha desigualdade? Se todos tomassem a decisão de descer, vocês estariam numa guerra civil.” De outra feita, uma professora cubana indagava: “que menino era aquele que levava nas pequeninas mãos uma caixa de madeira e os pés descalços àquela hora de uma fria manhã que mal começava?”

O que gera perplexidade para os quem vêm de fora, banaliza-se, torna-se hábito, nestes tempos de “indiferença pós-moderna”. Não para todos que aqui vivem, é verdade.

Sabe-se que a população de comunidades marcadas pela ausência do poder público, pela precariedade, tem seu espaço rigorosamente controlado, demarcado.

Por outro lado, por exercício diuturno de sobrevivência, aprendeu, ela também, a vigiar. Quando, por exemplo, uma ação policial ali se dá, quando um parente é levado para áreas afastadas, no ponto mais alto do local, mulheres (mães, irmãs, tias, companheiras), numa procissão silenciosa, sem cânticos que as console, tendo apenas como arma a coragem do gesto - não desistem. Acompanham-no, forçando que regresse – à salvo, pelo menos naquele instante – até ser conduzido à viatura. O que acontecerá depois, transforma-se numa outra e dolorosa história, feita de interrogação e angustiante espera.

Se crianças tombam, vítimas de balas perdidas, manifestantes fecham as principais vias de acesso, interrompem o trânsito, improvisam barreiras. Rapidamente e de modo eficaz, agentes são acionados. Da revolta passam ao medo. Acuados regressam ao parco espaço que lhes é devido.

Josué de Castro, em seu livro Sete palmos de terra e um caixão, ao comentar o início das Ligas Camponesas, lembra-nos de que tudo começou com a “reivindicação dos mortos”. Havia na cidade de Recife, um único caixão, que ficava na prefeitura, para enterrar os pobres. Emprestavam-no, desde que fosse devolvido. Daí o poema de João Cabral de Melo Neto, “Cemitério pernambucano”:

Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.


Tais pessoas se afligiam ao pensar que na hora da prestação de contas de seus atos na terra, já se encontrariam em desvantagem. Levariam as mortalhas sujas quando se apresentassem ao guardião das chaves do céu. Não seria correto, pelo contrário, se constituiria numa afronta ao santo. Os ricos com suas roupas alvinhas entrariam de imediato. Não era justo! Da reivindicação de morrer com dignidade, a viver de forma digna, tornou-se um pequeno, mas decisivo salto: o direito à terra, a um pedaço de chão.

Hoje, quatro décadas depois, a lição de Josué de Castro ecoa em nossa mente. Ao passarmos pela Linha Vermelha, verificamos, não sem perplexidade, o escudo de acrílico, símbolo da segregação. “Evitam o ruído”, dizem... Exclusão, o sentido profundo, simbólico da iniciativa. Já foi dito que cada palavra guarda uma cilada. Penso que o mesmo é válido para as formas arquitetônicas. A divisória, por estranha ironia, lembra um escudo. À propósito, para que servem os muros?
 
*Professora da Faculdade de Letras

1 comentários:

Unknown on 30 de maio de 2010 às 08:42 disse...

Complexo da Maré é enorme não dá para esconder precisamos de um trabalho de divulgação contra esse "Muro" vamos se unir se eu puder ajudar conte comigo.

 

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